sonho lúcido é acordar

#1 Crônicas de isolamento

Gabriela Wenzel

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Tô mais nostálgica que Florbela Espanca em dia de chuva.

A brecha na parede

A vizinha acordou animada hoje, e não sei dizer o misto de sentimentos que aquilo despertou em mim. Isolada nas paredes da agora casa, já passei horas a mais ensaiando diálogos que não fazem sentido. E as saudades que tenho de qualquer coisa normal, de qualquer coisa livre, de rua, não impedem que eu rabisque a casa toda para evadir o tédio. Apesar disso, não caibo mais em lugar nenhum. A calçada triste me fita, desafiando a sentir mais sem guardar nada. O que tenho pra dizer que nunca disse? Quais momentos vão ficar do que eu fiz? E do que não fiz? O remorso de não ter saído com a Júlia naquela tarde de calor bom, a resistência que tive em dizer sim para os encontros com o destino… o que eu deixei, que hoje não deixaria? O beijo na sacada de qualquer lugar. O riso frouxo que deixei de conter. O segredo que nunca contaria se soubesse. Que laços escaparam da minha vista? Onde estava quando Olga me chamou para sair? As ocupações que eu tinha foram consumidas por ansiedade. Tenho medo demais das coisas que nunca mais serão normais. E eu que sempre fui arredia de situações rotineiras, hoje apelo ao aleatório pulsar do tempo. Sim, da vizinha vinha melodia de animação. De onde ela tirou tanta vontade? Acordei só com o barulho, dependesse de mim ficaria embolada na coberta meio dia. Ela cantava enquanto a vassoura rodava pelos cantos do parquet. Não que tivesse raiva, embora também houvesse, era mais falta de crença que ela ainda conseguisse comemorar o dia chuvoso e úmido. “Não tenho nada a ganhar, nada a perder”, pensou ela enquanto ligava o volume máximo no som. Se manifestou no mundo como pode. Procurei por tempo demais a caneta, sem me dar conta que as histórias estavam em toda a parte. Dentro de mim transbordavam como se não houvesse mais canto para descansar. Na casa que é grande por fora, habita um musgo vadio que se ocupa de me poluir.

Voltei aqui para dividir meus rascunhos sem sentido com coragem.

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