avant-garde(nal)

#2 Crônicas de isolamento

Acordei errado

Gabriela Wenzel
4 min readJul 22, 2020

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como quem troca 8 por 10
e fica tudo igual
mas na real não fica
dentro
fica outra coisa
meio passado, meio fruta seca no pote

quando passa, a coisa para de doer
ou dói diferente, não sei dizer
a gente senta num banquinho de perna curta pra pensar
e vê que não mudou nada
mesmo que tenha mudado tudo
digo, o cenário, a luz do fim do dia, a temperatura e os periquitos que voam em cima da casa
a cama pode ser outra, mas o sonho da noite, não

tem dias que olho no espelho e vejo esquisito,
outra pessoa
mais velha
mais cabida dentro de si mesma
saíram as bochechas graúdas para entrarem os olhos cansados
não acho que é feio
acho que é meio isso envelhecer, ver a coisa diferente
mas saber como era antes

também me sinto muito nova nas noites que sobra endorfina
muita energia daquelas de pular no sofá, rir e fazer graça boa
uma serelepice dessas que cansa

noutros dias o joelho ruge e range gemidos tenebrosos
como se não fosse mais andar pra sempre naquele dia

que egoísta a gente é
bem dentro, quase sempre, é
li sobre o narcisismo, nesses tempos de delírio neoliberalista, e pensei: bang! tá aí, penso isso também
é migalha falar de si como um produto que vende, ou não
falar de si mesmo como se fosse a única coisa pra pensar
se esquecendo do contexto, da política, da cena no hospital, da cova
do cenário lá fora

têm dias que a empatia dói tanto que parece que me arrancaram uma parte do corpo
não consigo comer, pensando na fome
não consigo rir, pensando nas famílias que perderam gente tão querida
não consigo pensar direito, e essa parte me preocupa, pensando no futuro, mesmo naquele mais próximo, que terror pode ser

como qualquer pessoa que sente, nestes tempos frios, sinto medo
cansa, choro de babar o travesseiro
não sei de onde espero que venha o equilíbrio necessário
pra salvar essa cidade, o país
salvar o mundo
e aí é egoísmo de novo
que a gente pense que pode mudar alguma coisa nessa linha do tempo que é muito maior que a nossa pequena e flash vidinha

a monja economista disse que são 7 gerações para entender o que nossas ações causam no planeta
SETE
não tenho condições de lidar com toda essa expectativa
mas gosto de pensar, admito
me sinto coisa humana muito viva
uma quase obrigação de dividir, de partilhar
uma coceira da civilização que atiça: fala para o outro o que você tá vivendo!

a coisa da palavra derretida em poema é que ela fica faca, né
ela corta e, às vezes, você não sabe o que corta em quem
tem gente que fica mesmo
bonita e embrulhada no passado
mas que não passa disso
porque não tem nada que dure mais do que precisa
nem a vida

pra gente entender o que ainda não aprendeu ou sofrer
a morte vem todo dia pra dizer que a gente não sabe de nada
o poder não sabe de nada
a polícia não sabe de nada
mata vendo a morte no olho do menino pequeno, e não sente nada
NADA
essa sensação de esvaziamento corrói de uma forma a acabar com a minha península de fé na humanidade
juro

nesses dias me atiro ismália na minha falta de crença
por que ser humano é ser cruel demais
e não precisava ser assim
queria ver um poder-mulher florescendo no mundo

na rua que é colorida, e é ladeira, e já foi música
penso na vida bonita que podia ser
cada um fazendo o seu pedaço de sonho
podendo crer em algo

porque crer é negócio muito importante
e nem digo deus, ainda que, sim, vale deus também
mas me refiro a uma fé mais subjetiva, que molda o cerne da gente
faz acreditar de novo que se pode acordar no outro dia e sentir as coisas
sei lá, acreditar no que é bom, ter força para construir sempre mais possibilidades

para lutar

é preciso muita fé para lutar, não se enganem
sonho, porque sou otimista incurável, com esse dia em que a gente possa viver a realidade que a fé da luta acredita
que a gente possa se amar, beijar a boca, que todo mundo possa comer
comida, livro, possibilidade
que cada um possa fazer a sua sina

nesse dia não vai ser egoísmo olhar pra dentro
porque vamos perceber que dentro cabe a parte de fora também
tudo é parte de dentro
um ecossistema maior
a gente é parte do todo, apesar de ser diferente
(e não indiferente)
por isso a dor, a ansiedade, a depressão
porque é impossível viver só dentro
quem se engana vive menos, e pisa ludibriado pelo próprio espelho
fala no eco

nosso corpo é orgânico-social
tudo nos toca
de alguma forma
e não acaba
ensimesmada

Quando acordo angustiada, escrevo para mim. Num dia qualquer misturo tudo, medito em colagem, e colo aqui.

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