Nas bordas da identidade

Gabriela Wenzel
8 min readJul 5, 2017

A performance drag vista por dentro

Quando encontrei Plínio naquela terça-feira ainda fazia um sol intenso do meio da tarde. Ele voltava da academia, e depois de um banho estaria pronto para começar a entrevista. Subimos para o sétimo andar do prédio no centro histórico, e lá em cima, um apartamento pequeninho e cheio de vida se abriu. “Aqui é nosso canto, fica à vontade”, avisa enquanto começa a se preparar.

Na parede lilás que predomina no ambiente há alguns quadros com personagens de games antigos, e fotos do casal. Plínio e Claiton estão juntos há cinco anos, e a menos de três moram juntos. O ambiente aconchegante reúne tudo que eles gostam, e a decoração tem um de toque pessoal. À altura da janela, uma pequena horta improvisada reúne chás e plantinhas que ainda vingaram. Livros em todos os lugares. E uma baguncinha charmosa.

Quando ele sai do banho, Clainton chega. É ele quem vai fazer a produção de hoje. “Isso nunca acontece, normalmente cada um se maquia e a gente se ajuda, mas hoje ele vai fazer a minha”, anuncia Plínio de cara lavada e um short vermelho desbotado. Claiton Borges é, além de namorado, cabelereiro e maquiador, e foi junto dele que Plínio decidiu brincar de ser drag.

Faz dois anos que ele “se monta” como Ibby Manko, uma drag inspirada na literatura fantástica do escritor britânico J. R. R. Tolkien, herança do lado nerd do estudante de Psicologia. A personagem nasceu de uma vontade antiga, por diversão. Influenciado pela série americana RuPaul´s Drag Race, reality show que simula um concurso de beleza entre drags, ele começou a se produzir para festas dessa temática. Aos poucos Ibby acabou se tornando uma outra identidade de Plínio. Por meio dela era possível expressar sua sexualidade de forma artística.

Ao menos naquele momento em que ele se transforma, adotando características historicamente associadas ao feminino, ele experimenta se conectar com um gênero mais ligado a sua essência queer, performando e subvertendo a identidade padrão associada ao seu gênero de nascimento, o masculino. “No palco consigo ser apenas a Ibby dançando, porque o Plínio nunca teria condições ou carga emocional e política para fazer aquilo, não teria a potência que uma drag tem quando ela performa”, pondera o artista enquanto aplica cola na sobrancelha. Depois de grudar todos os fios, começam as muitas camadas de base e pó compacto que ainda estão por vir.

Amor entre drags

Toda drag tem uma mãe, faz parte da concepção dos personagens. “A mãe é alguém que vai ter um olhar crítico, dar palpite”, explica. A “mãe” dele é o Clainton, e vice versa. “Eu e o Claiton começamos a fazer drag juntos no mesmo dia, eu fui a mãe dele e ele foi a minha”, recorda fazendo carão no espelho entre uma e outra pincelada do maquiador. O namorado de 25 anos é responsável pela drag Dora Adora, e leva a sério o envolvimento com a montagem.

Uma maquiagem pode levar de três a seis horas, isso sem contar o tempo de concepção das roupas, da apresentação, e tudo isso acontece depois de muito teste. O carinho em cada detalhe exige uma atitude de prevenção: “não saio montada na rua por medo de alguém destruir minha arte”, comenta Clainton enquanto desenha as sombras no rosto de Plínio.

Claiton se dedica na produção

Naquele momento, ao som do álbum Joanne, de Lady Gaga, fico pensando que tudo aquilo não se trata só de maquiagem e brilho, é um ato de existir. Como o mundo lá fora pode não entender esse amor que eu vejo aqui? O ódio que oprime drag queens, homossexuais, LGBTs como um todo, e também as mulheres, não é o mesmo, mas tem origem em um mesmo raciocínio patriarcal e machista que impõem um lugar de submissão ao feminino e de dominação ao masculino (branco, heterossexual).

Mulheres, nesta lógica, deveriam estar ligadas a representações do feminino, e os homens, ao masculino. Mas tudo isso é muito castrador, não é mesmo? Que a gente precise sempre desses dualismos para compor nossa identidade. O que a drag nos permite imaginar, mesmo naquela ideia do palco e do show, é que tudo isso que nos veste é uma construção, e que ela deveria depender somente de nós, e não de um modelo hegemônico que extermina tudo aquilo que parece estranho, diverso. Tudo aquilo que seja o outro.

Uma diva para todxs

“Existe uma performatividade do masculino que é agressivo, viril, que acaba sendo tóxica e vai desencadear esses machismos, esses preconceitos”, analisa Christian Gonzatti, mestrando em Comunicação Social pela Unisinos e que estuda cultura pop e questões de gênero. “Por causa da exclusão social e do preconceito, a gente vê um cenário em que essas opressões de gênero acabam gerando um nível de suicídio muito grande entre os jovens LGBTs: 60% dos jovens que se suicidam são LGBTs”, problematiza Christian.

Para ele, drag é importante por representar um afronte, um grito de resistência em forma de arte nesse cenário homofóbico e preconceituoso. É como gritar: nós existimos e somos maravilhosas! O ato de performar drag não tem relação direta com a sexualidade ou com a identidade de gênero do indivíduo performista, ainda sim, a drag é uma representação estética e artística reivindicada e apropriada pela cultura dos LGBTs desde os anos 60.

Nesse cenário, é importante que as drags habitem os espaços e sejam convidadas da subversão à luz dos holofotes. É nesse sentido que o programa americano RuPaul´s passa a representar toda uma geração de novas drags, que descobrem esta arte tão antiga por meio de uma brincadeira, um programa de TV. “Por mais que toda perfomatividade seja condicionada pela cultura, ele deixa uma brecha pra pensar: se é assim, porque a gente não pode modificar a cultura e criar uma outra performatividade que pare de potencializar o machismo e o preconceito?”, questiona Christian, que também é autor da página Diversidade Nerd.

“Todos nós, no final das contas, acabamos fazendo drag”, pois nos condicionamos a símbolos historicamente ligados ao feminino ou ao masculino.

A performatividade de gênero que tanto falamos aqui é um conceito trazido pela filósofa Judith Butler, e serve para explicar como as transexuais, as travestis, os gays, as lésbicas, as ad infinitum nomeações, são outras formas de ser, outras identidades não normativas, subversivas. A drag, ainda que não seja uma identidade de gênero ou uma forma de sexualidade, permite expor todo o teatro que envolve a construção dos gêneros, e por isso é tão ligado ao movimento artístico da causa LGBT.

Isso aqui não é bagunça, mulher pode tudo!

Tem muita gente que acha que drag é só quando homem se veste de mulher, mas não é bem assim. “Ter mulheres fazendo drag é demonstrar mais ainda essa artificialidade do gênero, porque elas estarão exacerbando ou ridicularizando aquilo que é imposto pra elas”, pontua Christian.

Em São Paulo, o coletivo Riot Queens, nasceu com o objetivo de defender o espaço para drags mulheres. Formado por seis artistas, mulheres de diferentes sexualidades e corpos, o grupo pauta a importância da representatividade na cena.

A arte drag é problematizada por vertentes feministas radicais, que entendem que a performance drag reforça os estereótipos que oprimem as mulheres. Mulher com cabelo cumprido, maquiagem, bunda grande, peito grande, curvas, salto, sexualidade, tudo isso é usado como recurso na hora de fazer a caricatura do feminino. Ainda sim, as Riot Queens, se consideram feministas e drags, e entendem que justamente por isso é preciso ter espaço para mulheres na cena, para que possam dar opinião e dizer quando uma performance está sendo opressiva ou não.

Mas drag opressiva, isso é possível? “Se a pessoa que faz a drag for elitista, machista e que gosta de conservar estereótipos, moralista, a drag também vai ser”, quem nos responde é Plínio, já montado de Ibby, e defende que nesses embates entre questões de gênero o mais rico é o diálogo e a convivência. “O que a gente vê como ato que liberdade pra gente, acaba sendo um grito de opressão para outra pessoa”, analisa depois de um pequeno desfile pela sala.

“Eu sei que soa machista isso mesmo, quando a pessoa fala: ai, vou sair de menininha, então a pessoa vai lá mesmo coloca peruca, se veste de menininha e diz que é uma mulher. Mas pro gay isso é poder dizer um grande foda-se se eu sou feminina, eu posso ser mais feminina do que eu sou de boy durante o dia, sabe? Cê não viu nem um pouco de como eu posso ser feminina e de como eu transformo isso em potência na minha vida.”
Plínio Silveira Júnior

Era noite quando a produção de Ibby terminou. Ao longo do dia percebi uma imersão no personagem. Enquanto nasciam cores novas no rosto, Plínio também mudava. Mais expansivo, risonho e animado, se observava no espelho e se reconhecia como Ibby. Achei lindo, libertador. A liberdade de ser diferente, de questionar o que é certo e errado, de destruir o certo e errado, de construir mais pontes entre a imaginação e a vida. A drag desfaz aquilo que acreditamos ser natural, e se recria de diferentes formas, para nos mostrar a potência de construir a diversidade de identidades.

Impressão de repórter

Tive a oportunidade de me montar como drag no dia da entrevista. Maquiagem pesada, peruca e uma playlist dançante do Spotify, e eu já estava no clima de fazer carão. Foi divertido. Enquanto nos preparávamos para a foto final juntos, entrou um cílio no olho do Plínio e borrou toda a maquiagem. Tudo. Todo o trabalho de quatro horas escorrendo no canto do olho. Eu apavorada, só escuto: “fotografa isso, me filma!”. Era Ibby sem sair do personagem, sem se importar com o imprevisto. Caímos na risada. A experiência foi de sentir uma outra versão de si, e ao mesmo tempo uma caricatura, um personagem.

Na volta da entrevista usei o transporte público ainda montada. De todos os lados, olhos grandes queriam me entender, mas de alguma forma também me atacar, julgar. Na rua vislumbrei um tanto daquele ódio que antes o casal de namorados havia me contado. O mundo ainda é muito machista, homofóbico. Sair na rua, pintado que seja de algo que se pareça com feminino, e você é passível de julgamento, agressão, violência. Sendo mulher e meio drag, já que naquele momento estava destituída da peruca e dos carões, entendi porque ainda precisamos transbordar todas as bordas.

Publicado na edição 47 da Revista Primeira Impressão, produzida pelos alunos e alunas de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). 2017/1 — (Páginas 54–57)

Texto e fotos: Gabriela Wenzel

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